Uma nova revista sobre design, em Português.
Durante o ano de 2020, cidades de todo o mundo assistiram à proliferação duma nova e reconhecível silhueta: dobrado sobre uma bicicleta, sentado mais direito numa motocicleta, de pé numa trotineta, ou simplesmente andando depressa, um jovem – são invariavelmente jovens, quase sempre homens – olhando para o ecrã de um smartphone confirmando direcções. Preso às suas costas, um cubo monocromático cheio de comida e urgência. Entre cada entrega, grupos destes homens reúnem-se em frente de todo o tipo de restaurantes, cubo na mão ou ao ombro. Esperam que as suas encomendas – ou antes, as encomendas alheias que lhes coube transportar – fiquem prontas. Ao longo do dia e noite adentro, vemo-los para trás e para diante, entre as portas dos restaurantes e os endereços na outra ponta das encomendas.
O objecto que transportam poderá ser definido como uma mochila (uma bolsa-mochila, talvez?), mesmo que tenha menos aspecto de bolsa ou de mochila do que de caixa. De facto, a sua forma deriva duma caixa de pizza padrão (35cm de lado e 4cm de altura) cujo volume foi extrudido verticalmente de modo a acomodar, no máximo da sua eficácia, uma pilha de 10 pizzas. As paredes deste volume são feitas de um material isotérmico flexível que leva a que a regularidade, rigidez e eficácia deste quase-cubo dependa do conteúdo transportado. Existem modelos simples, genéricos, sem alças, pensados para serem transportados à mão. A maioria, porém, são mochilas que nas versões mais recentes incluem bolsos exteriores para transportar pequenos objectos, bem como fechos que permitem abrir ou colapsar um fole vertical, alterando assim a sua forma e capacidade. As suas divisórias interiores, mais ou menos amovíveis, adaptam-se aos diferentes tipos de cozinha (e correspondentes embalagens). No essencial, são variações subtis de um mesmo objecto – aquilo que as distingue são as cores e o logótipo do serviço de entrega. O que as une é a aparência de absoluta desadequação: um volume cúbico cujo centro de gravidade se afasta do corpo; uma face rígida que não se conforma às costas; a ausência de cintas que mantenham o volume mais estável, cingido ao tronco – o exacto oposto de tudo o que as boas práticas ergonómicas ditam para o transporte de cargas às costas. Uma mochila anti-mochila.
Não que este objecto seja uma novidade. Patenteada em 2002 pela inventora norte-americana Kathleen Gay Peeples, a Multistack Pizza Bag é uma de inúmeras bolsas térmicas para transporte de alimentos projectadas, patenteadas e comercializadas desde os anos 1980. Contudo, a sua repentina ubiquidade foi tão inesperada como uma pandemia. Do mesmo modo que o uso generalizado das máscaras se tornou a representação visual do coronavírus e do medo por ele incutido – o seu sintoma colectivo mais evidente –, esta (anti-)mochila (quase-)cúbica tornou-se uma espécie de manifestação secundária, porém duradoura, da Covid-19.
E também sinónimo de várias outras coisas. Em primeiro lugar, e mais obviamente, do aumento exponencial das entregas ao domicílio durante a pandemia, como resultado das medidas de confinamento obrigatório; depois, do medo de infecção que levou as pessoas a adiarem comer fora de casa; finalmente, em tempos mais “normais,” da implantação definitiva de um novo hábito de consumo.
A mochila tornou também evidentes outros fenómenos, como o aumento da mobilidade ligeira – quer pela utilização de bicicletas e trotinetas próprias dos entregadores, quer (no caso de Lisboa) pela rentabilização do serviço de bicicletas partilhadas oferecido pela autarquia. A utilização destas bicicletas (sobretudo da sua versão elétrica) por estes serviços de entregas exacerbou a sua escassez, o que gerou queixas de outros utilizadores. Acima de tudo, ela passou a simbolizar algo menos evidente: a precariedade destes trabalhadores. Os seus chamados uber-jobs são uma nova e bem pior versão dos McJobs do século passado: igualmente mal pagos e subprotegidos mas ainda com menos direitos (ou sem direito algum). Em Lisboa (e não só), os homens que transportam estes objectos são quase todos jovens mas também quase todos imigrantes – indianos, nepaleses, bangladeshianos, paquistaneses, brasileiros… Com excepção óbvia destes últimos, a maioria ainda não fala português e muitas vezes só fala um inglês rudimentar. São convidados a trabalhar, e residir, em Portugal em condições de questionável legalidade e dignidade. Muitos são “reconvertidos” de outras explorações, como as de apanha de frutos vermelhos e saladas empacotadas que proliferam na Costa Vicentina.
Dependentes dos algoritmos que os obrigam a esperar por encomendas junto dos restaurantes, que os impedem de recusá-las sob pena de serem penalizados e receber menos encomendas futuras, que só lhes prestam apoio perante problemas com as entregas em curso e que os ignoram em caso de acidente ou outro tipo de problema, estes homens acabam por criar redes informais de apoio com seus compatriotas – fazendo prevalecer uma solidariedade geográfica sobre uma eventual luta comum: a luta pela dignidade laboral. Para além da absoluta falta de protecção com que exercem a sua profissão, eles têm ainda que assegurar os meios de trabalho indispensáveis: endividam-se para comprar o veículo que lhes permita responder atempadamente aos pedidos e negociam mochilas em 2ª mão, entre eles ou no OLX – onde correntemente se vendem por 25€–35€ ou à volta de 50€, se novas.
Mas nem sempre o negócio em torno destas mochilas partiu da necessidade de arranjar um instrumento de trabalho. Como se não bastassem já todas as cargas simbólicas de que este objecto é veículo, ponhamos-lhe às costas mais uma: durante a pandemia, nalgumas cidades europeias, mochilas como esta foram transaccionadas online para permitir circular sem restrições. Nesse curto período, o objecto passou a ser outra coisa – a coisa oposta, na verdade – para aqueles que não dependiam dele para trabalhar: um efémero instrumento de privilégio. Tornou-se um salvo-conduto para quem o exibia, cheio ou confortavelmente vazio, às costas. Findo o confinamento e a necessidade de recorrer a subterfúgios para sair de casa, a mochila voltou a ser o que era.
Hoje, a pandemia parece já uma memória distante e os objectos que lhe associamos foram desaparecendo, tanto da vista como da nossa prática quotidiana – os dispensadores de desinfectante das entradas dos edifícios, os testes das caixas de supermercado, os certificados de vacinação das carteiras. Até as poucas pessoas que usam máscaras voltam a ser olhadas com uma certa estranheza antes reservada para os turistas japoneses. Um objecto perdura e prolifera, porém. Um cubo que alguns continuam a carregar desconfortavelmente às costas, acelerando em scooters ou bicicletas kitadas, para entregar as refeições dos outros. Uma mochila estranha, conspícua, um símbolo tridimensional e portátil das vidas invísiveis daqueles que a carregam – uma nova forma para a precariedade.