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Como projectar uma revolução

O Palácio de La Moneda, sede de governo do Chile desde o domínio colonial, foi bombardeado a 11 de Setembro de 1973 pelas tropas do general Augusto Pinochet. Este acto marcou o início do golpe de estado civil-militar que terminou brutalmente o governo, e a vida, de Salvador Allende, o presidente eleito democraticamente em 1970. Reconstruído durante a ditadura que durou até 1990, o complexo presidencial inclui, desde 2006, o Centro Cultural La Moneda. Em 2020, Eden Medina, Hugo Palmarola e Pedro Ignacio Alonso propuseram à sua direcção uma exposição que celebrasse, através do design, a história e legado do governo da Unidad Popular (UP) que precedeu o golpe. Inaugurada a 7 de Setembro, esta integra as comemorações dos seus cinquenta anos, com que o actual governo do Chile, liderado pelo progressista Gabriel Boric, pretende afirmar um compromisso da nação com a democracia e os direitos humanos. 

A exposição Cómo diseñar una revolución: La vía chilena al diseño reúne os interesses de pesquisa de três curadores, investigadores, colegas e amigos de longa data. Medina, colombiana, é professora no programa de Ciência, Tecnologia e Sociedade (STS) no Massachusetts Institute of Technology (MIT); em 2014 lançou o livro Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende’s Chile, a mais completa abordagem histórica à iniciativa pioneira do governo de Allende, que fez de um país periférico uma vanguarda da cibernética: o projecto Cybersyn. Palmarola, designer, e Alonso, arquitecto e curador, ambos sediados na Faculdade de Arquitectura, Design e Estudos Urbanos da Universidade Católica do Chile (FADEU-UC), têm também pesquisado este e outros projectos desenvolvidos no mesmo período. 

O principal feito da exposição é a primeira reconstrução completa, fidedigna e funcional do centro de operações do projecto Cybersyn, uma sala cibernética que permitiria ao governo visualizar diversos indicadores económicos e sociais do país. Projectada em 1971 no complexo presidencial, foi também destruída durante o golpe. Mais do que um exercício de cenografia, a reconstrução parte de um processo de investigação colaborativo e multidisciplinar entre a FADEU-UC e o MIT, cujas equipas incluíram arquitectos, designers, historiadores e engenheiros. Estas reconstituíram os circuitos electrónicos, definiram os tecidos e cores dos seus componentes e produziram, através de desenho paramétrico, as sete cadeiras de controlo. Esta atenção ao detalhe revela o que Alonso descreve como “um sistema complexo e completo.” “Não se pode mostrá-lo em partes”, reforça o curador. “A cadeira também não é uma cadeira, é uma interface. Entra na história do design de cadeiras. E entra na história da relação entre o design e a cibernética, a ciência da computação. E é por isso que fazemos a reconstrução do todo, porque a cibernética é total.” A exposição procura o mesmo: “Houve um momento político, histórico, que foi articulado através de todas estas diferentes abordagens ao design. Embora os objectos tenham uma grande importância do ponto de vista do seu próprio design, não estão isolados da relação entre eles.” 

Dois objectos, expostos lado a lado, expressam esta abordagem que desafia o cânone convencional das exposições de design: uma colher doseadora de cinco gramas, das poucas projectadas pelo Departamento de Design Industrial do Instituto de Investigações Tecnológicas (INTEC) que sobreviveram, e a capa do álbum Canto al programa, cantado e tocado pelo grupo Inti-Illimani, editado originalmente em 1970, cuja imagem principal é uma mãe com o seu filho ao colo. Tanto a racionalidade da colher, com ar de ferramenta científica, como o grafismo figurativo, colorido, emotivo do disco, estão vinculados pelo seu objectivo partilhado: o cuidado infantil, numa altura em que pela primeira vez, no Chile, as crianças começam a ser consideradas como sujeitos de direitos. Esta abordagem curatorial considera os produtos projectados no governo da UP “não como uma ilustração desse período, mas como modeladores e facilitadores de tudo o que aconteceu”, diz Palmarola. 

Cada um dos capítulos da exposição pretende mostrar, de forma concreta, o que as pessoas tentaram fazer para realizar as transformações do período de Allende. Palmarola acrescenta que a exposição pretende “responder a perguntas significativas que há cinquenta anos deram, através do design, solução a problemas significativos.” Como tal, o capítulo do projecto Cybersyn chama-se Como administrar uma economia, tal como outros se chamam Como construir uma sociedade que lê; Como reduzir a dependência tecnológica; Como promover a música popular; ou Como apelar à acção colectiva

Os curadores contaram com a contribuição crucial de figuras como Gui Bonsiepe, o designer e teórico alemão que dirigiu o Departamento de Design Industrial do INTEC e liderou o design do projecto Cybersyn. Deixou o Chile em 1973 e vive actualmente, com 89 anos, entre a Argentina e o Brasil. Também destacaram o trabalho de designers previamente desconsideradas, como Pepa Foncea, Lucía Wormald, Eddy Carmona, Jessie Cintolesi, e outras designers que trabalharam nesta iniciativa e no INTEC, bem como Marisol Navarro, pioneira no design de brinquedos didácticos no Instituto de Psicologia Aplicada, que fundou na Universidade do Chile. 

Fazer uma exposição que aborda o resultado social da política foi extremamente complexo no contexto de polarização que se vive no Chile, sobretudo graças ao processo de renovação constitucional que tem oposto progressistas e conservadores, muitos deles apologistas da ditadura. Contudo, o amplo reconhecimento institucional, boa recepção crítica e muito público, mostram que a exposição é mais do que um exercício de nostalgia feito para pessoas que viveram o período da UP. Face a um contexto de destruição, como foi o da ditadura, Palmarola refere que falar da visão e ambiente positivos do período anterior gera no público (em que se inserem muitos jovens) um ambiente positivo. 

O projecto de poder que expõe foi assumidamente um projecto de construção. “Se ele [Allende] tentou fazer uma revolução socialista democrática”, conclui Palmarola, “o design seria então o primeiro design socialista democrático. Essa era uma questão que tinha sido levantada na Bauhaus, na escola de Ulm, ou nos países do bloco socialista. Nós, chilenos, tínhamos isso muito claro mas, afinal, o carácter, o processo inédito do governo Allende, é também um processo inédito no campo do design.” ⁕