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Almoço com a Fazer: Fabian Harb

Já estamos a meio de uma garrafa de vinho quando o meu cérebro se contorce para tentar perceber qual é o tipo de letra que está em todo o lado – nos pratos, nas taças de sopa, nas chávenas de café, acompanhada de um desenho a três cores de um presunto. É um clássico, mas é o quê? “É a Hobo!”1, exclama Fabian Harb, o nosso convidado para o almoço. 3 Sou imediatamente invadida por imagens dos anos sessenta, protestos contra a Guerra do Vietname, flower power e hippies em São Francisco, em forte contraste com o dia cinzento que está lá fora e a sala pequena e animada onde estamos a almoçar: o Xico dos Presuntos. Nós convidamos para almoçar e o nosso convidado escolheu o ponto de encontro. Entre sandes de presunto, ensopado de frango, sopa de legumes e o popular rosé dos vinhos verdes, estamos a falar de tipografia e do Porto, que se tornou a sua casa há dois anos. Harb é designer de tipos de letra, co-fundador da Dinamo, uma das mais conhecidas e prezadas type foundries europeias, e uma das pessoas mais curiosas, abertas e generosas que conheço.

Tudo óptimas razões para irmos almoçar, mas mais ainda para falarmos de tipografia e de design de tipos, que em Portugal têm uma comunidade devota e activa: as várias type foundries nacionais têm uma produção empenhada e consistente, a Associação de Tipografia de Portugal (ATIPO) reúne entusiastas da disciplina, e, anualmente, estudantes e profissionais participam no Encontro de Tipografia, que a cada edição é acolhido por uma diferente instituição de ensino superior. Isso faz com que entre as classes profissionais do design, os designers de tipos de letra sejam hoje a mais bem organizada e activa em Portugal a seguir aos arquitectos. Harb sente-se bem acolhido, e bem acompanhado, nesta cidade para onde se decidiu mudar: veio da Suíça, onde estudou e trabalhou.

A Suíça é a terra que viu nascer a Helvetica e a Univers, provavelmente os tipos de letra mais conhecidos e celebrados no século XX, e cuja cultura e história de design continua a influenciar o ensino de design gráfico em Portugal e no resto do mundo.2 Crescer e estudar nesse ambiente deve ser estimulante. Mas Harb é peremptório na sua análise do ambiente gráfico do Porto, que caracteriza como muito mais interessante que o suíço: mais complexo, mais rico, e com uma escala que ainda permite a manufactura e a experimentação que noutros sítios já desapareceu.

Reconhece-se também no perfil de muitos dos designers de tipos portugueses, que começaram como designers gráficos e depois mudaram de rumo, especializando-se em tipografia. Na verdade, há poucos pólos de ensino na Europa dedicados à tipografia, como os mestrados em Haia (Países Baixos) e Reading (Reino Unido). Também Harb começou como designer gráfico e foi depois da sua educação que começou a desenhar os seus próprios tipos, em colaboração com Johannes Breyer, com quem acabou por fundar a Dinamo. Em 2016 a Dinamo foi reconhecida com o prémio de design da Confederação Suíça, e desde 2018 Harb e Breyer são membros da Alliance Graphique Internationale (AGI), uma conceituada associação fundada em 1952 que reúne hoje a elite mundial do design gráfico.

“Começámos por desenhar tipos para os nossos próprios projectos”, explica,”e como éramos designers gráficos foram os nossos colegas, e a nossa comunidade, que se tornaram os nossos primeiros clientes.” Hoje em dia, a Dinamo tem uma produção sólida, desde a Ginto à Walter,3 e conta com clientes como Alicia Keys, Tumblr, Rimowa e o Comité Olímpico Internacional. Isso não muda, no entanto, o processo de desenho de tipos, que continua a ser o que Harb descreve como “de nicho, alquímico.” Há uma espécie de magia na opacidade da criação de tipos, onde “as pessoas não vêem o processo, o cliente não sabe como dar feedback.” E é sobretudo um trabalho constante, em que “a pesquisa é o trabalho.”

Terminamos o nosso almoço a partilhar queijo da Serra e marmelada enquanto falamos do contexto português. Harb não esconde a admiração por designers de tipos de letra que são completamente autodidactas, como Mário Feliciano. Mas falamos também, entre outros, do trabalho de Diogo Rapazote, Joana Correia, Rui Abreu e Francisco Torres, bem como da catalã Laura Meseguer, incansável instigadora da comunidade tipográfica internacional que passou este Inverno uma temporada no Porto. A quantidade de designers de tipos no Porto é admirável, bem como a sua dedicação, observa. “É uma comunidade coesa, e adoro isso”, diz-nos. “As pessoas dedicam tempo umas às outras; é algo que eu não conhecia antes.” A escala da cidade e a forma como a indústria e a manufactura estão presentes em espaços intersticiais também o fascina. Tudo pode ser arranjado, reparado, substituído. “Espero que isso não desapareça.” Chegam os cafés e a conta. Levamos mais uma sandes mista connosco. “Nunca mais me vou mudar”, conclui.

A Fazer almoçou com Fabian Harb a 7 de Fevereiro de 2024 na Casa dos Presuntos Xico, Rua do Heroísmo 191, Porto. Uma garrafa de Espadal, duas sandes mistas, dois salgados, três sopas, um prato do dia, uma sobremesa, dois cafés. Total: €30,10.

  1. Hobo, 1910, desenhada por Morris Fuller Benton para a
    American Type Founders. ↩︎
  2. Helvetica, também conhecida como Neue Haas Grotesk, 1957,
    desenhada por Max Miedinger e Eduard Hoffmann para a
    Haas Type Foundry; e a Univers, 1957, desenhada por Adrian
    Frutiger para a Deberny & Peignot. ↩︎
  3. Ginto, 2017, Seb McLauchlan; e a Walter, 2022, Dinamo &
    Omnigroup (Simon Mager & Leonardo Azzolini), ambas para
    a Dinamo Typefaces. ↩︎