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Semiótica de um bitoque

Um dos pratos que mais entusiasma os lisboetas é também um dos mais desconsiderados. O bitoque está ausente da maioria dos menus dos restaurantes com toalha de pano e, também, de Cozinha Tradicional Portuguesa, livro de Maria de Lourdes Modesto que estabelece o cânone culinário do país. Esta imagem, todavia, causou furor. O que é que ela tem, afinal?

Em mais de dez anos de Instagram, esta imagem foi a mais apreciada de sempre de entre as que publiquei. Trata-se de um bitoque que comi em Novembro de 2023 na cervejaria Sem Palavras, em Lisboa. À data em que escrevo estas linhas, 741 pessoas puseram um like neste prato gorduroso e sujo e quarenta e uma comentaram o post. São números normais para posts de corte que desfocará o quadro – e nós queremos e aceitamos isso, porque sabemos que o design da bagunça nos sacia.

Mas que vemos, afinal, nesta foto? O que vemos antes da bagunça do bitoque? Em primeiro plano, temos picles e azeitonas. São ambos perfeitos, no seu género. A couve-flor alva e com os relevos bem definidos; as azeitonas de cura tradicional – brilhantes, uniformes, verdíssimas e roliças; as rodelas de picles de cenouras também arredondadas, laranja vivo, a espevitar o conjunto de cor.

Logo a seguir o ovo e, por baixo, um pedaço de carne. Já vimos isto em MUPI de cadeias de restaurantes internacionais. Ovos por cima de bifes. Ovos por cima de hambúrgueres. O ovo estrelado é a comida mais sexy que há, é a Marylin Monroe do food porn, brilhante e leve, sensual e luminoso – e redondo. Quando era director da Time Out, quando tínhamos de vender uma capa da revista, alguém acabava sempre por sugerir: “Pomos um ovo estrelado.” Perfeitamente redondo, por favor.

Nas fotos de capa de revista e na publicidade de cadeia internacional, a apresentação do ovo é sempre limpa como a decoração de um studio dinamarquês. O ovo quer-se imaculado: a gema amarelada, um círculo perfeito pintado a Photoshop, a clara branca como o casario algarvio – sem manchas, sem relevos, sem bordas espigadas.

Por baixo do ovo de revista vem quase sempre a carne, aparada à sua proporção, reluzente na medida certa, com um dourado elegante, não excessivamente escuro, não o dourado que grita acrilamida, que grita cancro.

Mas o que aqui temos não é esse ovo de revista, é outra coisa. O ovo está encarquilhado pela fritura a alta temperatura, com pequenas poças de molho a boiar e despojos do alho que tempera o molho. É um ovo sujo, com as pontas acastanhadas, com a gema bojuda mas contaminada de clara.

Dir-se-ia que é um ovo feio, mas do ponto de vista culinário ele é perfeito. Tem tudo o que deve ter um ovo de um bitoque. É o exemplo perfeito do que deve ser o ovo de um bitoque.

As mesmas irregularidades do ovo encontramos na carne, mas elas também não são defeito. O bife do bitoque clássico é feito de cortes menos nobres ou seminobres, como é este pedaço do pojadouro. Nesse sentido, é natural que o bife tenha interstícios nervosos. É natural que não seja o bife perfeitamente simétrico e liso vendido na cadeia internacional de bifes.

O que é importante, aqui, é que seja notória a cor da fritura. Bifes branquinhos são bifes fraquinhos. Não se trata de estética, mas sim dos mecanismos do apetite, da fome, da sobrevivência. A maioria das pessoas, quando vêem um pedaço de comida acastanhado, sobretudo carne, começam a salivar.

Desse acastanhado decorre que o alimento foi cozinhado e, por isso, estará mais apto a ser consumido em segurança. Mas há aqui também uma físico-química simples do prazer: coisas acastanhadas, douradas, tostadas, assadas, significam reacções de Maillard.

As reacções de Maillard implicam uma transformação dos aminoácidos por via de uma fonte de calor. Essa transformação torna a comida mais complexa, mais aromática, com mais intensidade de sabor.

Ora, este prato está cheio de reacções de Maillard: nas batatas, no ovo, na carne e, ainda, nas batatas fritas, lá atrás. Este prato está cheio de castanhos, uma cor pouco fotogénica, mas apetitosa. A cor da fome.

Da mesma forma, podemos também questionar a estética do molho, tão espelhado que conseguimos nele contar as pestanas. Eis uma poça de gordura, porventura um cocktail de várias coisas pouco sofisticadas e oleosas, incluindo um certo creme vegetal solidificado e colorido de amarelo. Mas ela está lá a cumprir uma função, ela é essencial à vida e ao bitoque.

Para que serve a gordura, na comida? Em primeiro lugar, a gordura transporta sabor. Aqui, leva sobretudo o alho esmagado e a acidez do vinho branco, duas coisas que vão ainda aromatizar, condimentar – e ajudar a mastigar o bife e as batatas fritas.

E que batatas fritas! Na imagem, as batatas fritas aparecem num terceiro plano. À primeira vista, podemos achar que a desfocagem as desvaloriza, as torna secundárias na composição. Nada mais errado. Esta fotografia, sem as batatas fritas, seria muito mais monótona, não apenas pelo que ela aporta à composição cromática, como também pelos sinais que dá sobre o prazer da gastronomia. Com batatas fritas voltamos a ter reacções de Maillard, muitas – hidratos de carbono, naturalmente, mas também texturas.

Este prato, aliás, está cheio de texturas. Temos o molho liquefeito, a gema cremosa, temos o bife macio e suculento, mas com uma nervura que nos recorda o porquê dos dentes. Temos os picles crocantes e temos as batatas fritas secas e estaladiças.

É essa a sua beleza. Podemos questionar se é arte. Mas não duvidemos da arte de nos abrir o apetite. ⁕